Titulo: Coleccao Argonauta 107: O Imperio dos Mutantes (1966)
Formato(s): CBR Idioma(s): PT-PT Scans: Ruychi Restauro: Ruychi Num. Paginas: 185 Resolucao (media): 1291 x 1890 Tamanho: 40.10MB Agradecimentos: Obrigado ao/a Ruychi pelo trabalho de digitalizacao e tambem ao/a Ruychi pelo restauro! |
Resumo:
Mais um livro de Stefan Wul, grande escritor francês de FC que a Colecção Argonauta apresenta entre nós. Deste famoso romance, um dos mais emocionantes deste autor, transcrevemos seguidamente um expressivo texto:
O homem emigrara para planetas-paraísos de sistemas longínquos havia muitos séculos.
Em volta do Sol, apenas gravitavam mundos quase desertos. Apenas Vénus albergava uma sociedade organizada, relíquia do antigo Império. Mas três quartas partes da Ciência tinham-se perdido. E a grande desconfiança oficial em relação aos sábios, contribuía para apressar essa decadência. Acreditava-se ser suficiente utilizar velhas receitas herdadas do passado, mas que uma teocracia timorata considerava inofensivas.
Quanto à Terra... ! Era o planeta maldito. Era proibido tocar-lhe. Aliás o seu clima pluvioso e desesperante era suficiente para afastar os curiosos. Só contrabandistas sem fé e sem lei ousavam aventurar-se a lá chegar. Iludindo a vigilância da polícia espacial, esses bandidos praticavam o comércio das antiguidades terrestres, cuja procura continuava a ser forte por parte de certos depravados.
Em Vénus, a Ciência era tolerada. Mas o Consistório, presidido por sua Alta Prudência, encarregava-se de a manter dentro dos limites inofensivos. Do mesmo modo nos tempos antigos, certas tribos africanas tinham tolerado a presença, entre elas, dos ferreiros necessários à Economia local, mas suspeitos de comércio perigoso com os espíritos do fogo.
As gentes de Vénus ignoravam tais factos, como ignoravam toda a protohistória terrestre. Em relação aos sábios, obedeciam contudo a reflexos da mesma natureza. Podiam alguns investigadores aceder a altas posições sociais e ser cidadãos respeitados, mas o homem médio continuava a ver neles perigosos prestidigitadores.
Felizmente, havia os padres.
Joachim, o Mestre-biólogo, recebia todos os mesees a visita do Inspector-Padre.
Joachim ditava o seu relato mensal ao fixo-fone. A campaínha da entrada retiniu. Joachim premiu um botão e olhou o écrã. Viu a cara do Inspector-Padre. Deixou o trabalho e dirigiu-se ao corredor para ir abrir a porta. Teria podido, por certo, abrir a porta sem sair do escritório. Mas, para sua Vigilância, seria incorrecto. Era conveniente ser ele próprio a abrir.
O Inspector entrou e fez um sinal com o dedo. Disse: - Levante a cara, Mestre-Biólogo.
Joachim interrompeu a sua reverência ritual e apressou-se a dizer:
- Como se sente Vossa Vigilância?
Era um estranho espectáculo ver um velho encanecido desfazer-se em atenções para com um jovem. Mas esse jovem usava a insígnia sacerdotal, que impunha o respeito.
- Bem, obrigado, - disse o Inspector. - Vamos para o seu escritório, se não se importa.
Joachim precedeu-o, dizendo:
- Estou a acabar o relatório. Levo apenas dois minutos, Vossa Vigilância.
Depois, entrou no escritório:
- Queira sentar-se. Não demoro.
O Inspector abanou condescendentemente a cabeça e instalou-se numa poltrona. Joachim teve um sorriso de desculpa e premiu um contacto no fixofone. O aparelhe repetiu a última frase ditada:
- O êxito destas experiências clássicas mostra que marcamos passo há dois anos no mesmo tema...
Joachim continuou:
- Parece incontestável que as mesmas leis são aplicáveis aos Vertebrados superiores. E não se compreende porque seria o Homem uma excepção. Sem ir demasiado longe, ousamos esperar que o Consistório estatuirá a favor de experiências mais ousadas; em aves, talvez.
Calou-se e virou o manípulo de registo para enrolar a fita em sentido contrário. O aparelhe tiniu. Joachim soltou um suspiro.
- Está pronto - disse.
O Inspector tinha o sobrolho carregado. O biólogo esperou que ele se dignasse abrir a boca.
- Vai demasiado longe - disse enfim o Inspector.
- Não lhe agrada, Vossa Vigilância?
- Digo que vai longe. Fala do Homem. Temo que essas palavras se aproximem da incorrecção.
As mãos de Joachim agitaram-se.
- Que o Grande Ser me defenda de alimentar maus desígnios, Vossa Vigilância. Não são mais do que palavras emitindo uma hipótese científica. Tocar na embriologia do Homem é um sacrilégio, sei-o. Sinto horror em pensar que... mas da palavra aos actos vai muito, não é assim?
- Sem dúvida, sem dúvida, mas esta frase é infeliz e o Consistório será desagradávelmente influenciado por ela. Não sei se a experimentação em aves lhe será concedida.
Joachim apontou para o fixofone.
- Vossa Vigilância quer ouvir de princípio?
- Não, não. Dê-me simplesmente o rolo. Será escutado a tempo e horas. Resuma-me rápidamente o seu trabalho do mês.
O Sábio abriu o aparelho e deu o rolo ao visitante. Este colocou-o na pasta e cruzou os dedos, numa atitude de espera.
Joachim torriu.
- Hum... Ei-lo! Consegui provocar num frasco a génese de um batráquio normal a partir de um ovo fecundado e depois tornado a fecundar pelo núcleo de uma célula vulgar, colhida num ser adulto. A primeira célula provinha de um simples epitélio.
- Traduzindo a sua algaraviada científica: retirou o núcleo de um ovo normal, substituíu esse núcleo pelo de uma célula qualquer, colhida noutro indivíduo. O ovo satisfez-se perfeitamente e continuou a engordar para dar um sapo...
- Uma rã!
- Se quisr... Para dar uma rã normal e... !
- Esta rã era gémea da primeira
Se dizer uma palavra, o jovem Inspector-Padre tirara um dossier da pasta. Parecia procurar aí qualquer coisa. Joachim inquietou-se.
"Que vai ele encontrar ainda - pensava - Ah! Que saudades tenho do outro!"
O outro? Era o velho Inspector bonacheirão que morrera seis meses antes. O outro arredondava sempre os ângulos, fazia-se o menos rigoroso possível, humanizava as consignas. Mas o novo mostrava-se intratável, ainda que sem malevolência. Exteriorizava um zelo de principiante.
- Ah! Cá está! - exultou ele, pondo o dedo numa página do dossier.
Joachim teve um sobressalto.
- Cá está - repetiu o Inspector. Leio isto na sua última folha: ...Autorizado a prosseguir as suas experiências genéticas com peixes.
- Sim, Vossa Vigilância?
- Com peixes, e nada mais, Mestre-Biólogo. E o senhor fala-me abertamente de rãs. Ultrapassa os seus direitos.
"E contudo é verdade", pensou Joachim com irritação. E só li a última folha. O outro ter-se-ia rido apenas e teria acrescentado á margem a palavra batráquio. "Tanta coisa por uma rã"!
- É um animal aquático - arriscou.
- Vamos, vamos, Mestre-Biólogo, os castores também são animais aquáticos. Não ouso pensar nas reacções do Consistório se o senhor tivesse trinchado embriões de castores sem autorização oficial. Mas, tal como se apresenta, o seu caso é já suficientemente feio.
- Estou desolado, Vossa Vigilância. Sou um velho distraído. Que solução pensa...?
- Vão certamente destruir os seus instrumentos de experimentação em presença de testemunhas designadas. Ouso esperar que Sua Alta Prudência...
(Os dois homens inclinaram-se) ... não se mostre severo de outro modo para consigo - concluíu o Inspector.- E agora digamos a oração. Parece-me necessitado.
Recitaram em conjunto, de face inclinada: "Oh Grande Ser, protege os que têm de meter as mãos na Ciência. Conserva-os nos limites fixados por sua Alta Prudência. Protege-os das curiosidades excessivas e das tentações perigosas."
Joachim levantou a cabeça, mas apercebeu-se que o Inspector-Padre conservava a sua inclinada, numa atitude recolhida.
Fez o mesmo e pelo canto do olho procurou ver quando dignaria endireitar-se o seu visitante.
O Inspector pareceu enfim sair da sua meditação. Estendeu a mão.
- Dê-me a chave do laboratório - disse ele.
- Eu... Oh! Sim, perfeitamente, Vossa Vigilância.
Esta severidade excedia as suas mais sombrias previsões. Obedeceu contudo. O Inspector foi fechar a porta do laboratório e pôs a chave na pasta. Teve um sorrisozinho protector.
- Esperemos que o Consistório lha devolva brevemente - disse ele, saindo. - Não peque, Mestre-Biólogo.
Depois de uma última saudação, Joachim fechou a porta de entrada e permaneceu imóvel, a olhá-la. Lágrimas de raiva impotente brilhavam nos seus olhos. Secou-as finalmente e atirou-se para cima de uma cadeira, de cabeça entre as mãos.
- A Ciência - disse ele em voz alta. - A Ciência não é assim tão má. Sem a Ciência, Vénus nunca teria sido habitável. Foram os sábios que, noutros tempos, regularizou o seu clima.
Ainda que encolerizado, ele teve a impressão de blasfemar, enquanto uma voz interior lhe dizia: "sem a Ciência e os Sábios, a Terra teria permanecido habitável e o Homem não teria tido necessidade de emigrar".
Em Vénus, ninguém pronunciava o nome do planeta maldito sem pedir desculpa. Era uma grosseria. Joachim teve uma explosão de revolta infantil. Gritou com todas as suas forças:
- Viva a Terra! Viva a Ciência!
Depois, inquieto, correu à janela para ver se ninguém o tinha ouvido. O toque da compaínha fez-lhe tremer as pernas. Empalideceu. Admitiu o regresso do Inspector-Padre e viu rápidamente se este não se teria esquecido da pasta... Não!
Quem o visitava?
Murmurou:
- Oh! Perdão, Grande Ser, perdão.
Foi abrir.
Autor: Stefan Wul
Título original: La Mort-Vivante
1ª Edição: 1958
Publicado na Colecção Argonauta em 1966
Capa: Lima de Freitas
Tradução: Amadeu Lopes Sabino
Download (Acervo do Tralhas)
Promete!... Li uns quantos, noutros tempos. É bom poder ler, agora, mais outros tantos. Obrigado a Ruychi e ao Tralhas por o permitir.
ResponderEliminarObrigado pelas postagens!
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