Esta coisa da BD, nasceu em mim quando muito novinho, por volta de 1965, quando ainda estava na Escola Primária, e tinha um coleguinha de apelido Graça (que nunca mais soube dele, infelizmente) e que me emprestou para ler alguns “volumes” encadernados pelo pai dele, do “Pato Donald” e “Tio Patinhas”.
O pai dele era “encadernador” na Câmara Municipal de Setúbal, a cidade onde nasci. Por mero acaso, nesse ano (ou terá sido no seguinte?) os meus pais ofereceram-me pelo Natal o álbum “O Templo do Sol” do “TinTim” editado pela Flamboyant brasileira em 1965, álbum esse, que, muitos anos depois e estando ainda em estado relativamente impecável mesmo depois de inúmeras re-leituras, um dos meus filhotes (já não me lembro se o primeiro se o terceiro) resolveu pegar nele sem que eu me tenha apercebido para “praticar a sua veia artística” a esferográficas BIC. Claro que o resultado, sobre as páginas dos quadrinhos do meu grande herói Tintin, parecia-se mais com a inconfundível “assinatura “ (https://www.pinterest.com/pin/kurt-vonneguts-signature--137359857368744343/) de Kurt Vonnegut (https://pt.wikipedia.org/wiki/Kurt_Vonnegut), para além de algumas páginas, rasgadas, terem sido entusiasticamente “mastigadas e saboreadas”….!? E pronto, lá se foi aquela minha “relíquia” de BD….
Os meus pais incutiram-me o gosto pela leitura, pela música, pela ciência, e até me diziam que eu haveria de ser um Doutor, um Cientista, que por caso até sou, não em Medicina como eles aspiravam, mas em Engenharia. Na altura, em 1974—sim!, 1974!, ainda no chamado Período Revolucionário em Curso (PREC)—cheguei a frequentar a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL) no edifício de Campo de Santana e no campus do hospital de Santa Maria, e em paralelo o Instituto Superior Técnico (IST) da Universidade Técnica de Lisboa em Engenharia (nessa altura podia-se fazer isso!), mas a “confusão” revolucionária e algo “violenta e destrutiva” entre as facções dos estudante de “direita” e de “esquerda” nessas Faculdades fizeram com que eu “pausasse” os estudos por dois anos, pois aquilo já estava na via das aprovações por “aptitude” (Apto ou Não Apto), ou seja, a passagem fácil e de forma oportunista às “cadeiras”, em vez de ser por níveis de “qualificação” e mérito. E quase não havia dia em que não houvessem Reuniões Gerais de Alunos (RGA) que paralisavam quase tudo e batalhas campais entre facções da União de Estudantes Comunistas (UEC) e outras tendências políticas associadas à Juventude Social-Democrata (JSD), à Juventude Centrista (JC), à União Democrática Popular (UDP), etc. Uma dessas batalhas campais no IST foi a de março de 1975 em que até foram lançados pelos beligerantes jactos de água e pedradas nos dois sentidos ao ponto do edifício (Pavilhão Central) ter ficado com todos os vidros das janelas partidos, com muitas cadeiras e outro mobiliário destruídos afim de obterem, nomeadamente as pernas das cadeiras, para servirem de cacetes para as lutas corpo-a-corpo. Eu e aquela que viria a ser a minha namorada e esposa, estávamos lá e assistimos ao início de toda aquela pancadaria e destruição, e assim que pudemos, fugimos pelas traseiras do Pavilhão Central, saltando por uma das janelas. Não voltei lá até finais de 1976, quando percebi que as “coisas” se tinham acalmado e normalizado, e assim acabei por re-ingressar na Universidade nesse ano lectivo de 1976/1977, em Engenharia Electrotécnica. A Medicina tinha-me decepcionado, pois, pareceu-me na altura, que estaria mais orientada para a “clínica” do que para as ciências médicas/biomédicas. O que eu gostaria de poder ter frequentado seria Engenharia Médica (ou como se designa correntemente, Engenharia Biomédica), mas na altura esse tipo de curso não existia em Portugal (embora existisse já nos USA desde finais dos anos 1960 nas Universidades de Virginia, John Hopkins, Duke e Case Western). Mas nessa altura do PREC, era quase “proibido” sair de Portugal, e eu também nem tinha condições financeiras para o fazer…Yikes!
Quando ainda muito jovem, para além do “Pato Donald” e do “Tintim” eu também já ficava “maravilhado” ao ler algumas pranchas isoladas de revistas coleccionadas pelo meu pai (as que restaram após a devastação que uma tia minha lhes dera), tais como “O Mosquito” (tenho aqui o nº 1211 de 1951), “O Diabrete” (tenho aqui os nº 769 de 1950 e 801 de 1951), e do “Cavaleiro Andante” (de que tenho vários, sendo o mais antigo o nº 115 de 1954).
Uns anos depois, em 1968, já frequentando o Liceu Nacional de Setúbal, comecei a coleccionar a revista TinTin semanal portuguesa (de que tenho todos os exemplares publicados, encadernados), e desde 1972 comecei a comprar alguns álbuns que apareceram à venda (escapando à censura da altura), em francês, do Philippe Druillet (a saga Lone Sloane), do Esteban Maroto (Wolf et la Reine des Loups), do Gotlib (Rubrique-à-Brac), do Fred (Le Fond de L’Air est Frais, Le Piano Sauvage…), do Victor de La Fuente, assim como alguns dos primeiros álbuns em português de Portugal editados pela Bertrand…e a partir daí fui coleccionando mais, incluindo as revistas do Mundo de Aventuras (algumas da 1ª série, e imensas da segunda série), alguns Fanzines, a revista Spirou (tenho todos, encadernados), etc.
Outra paixão minha é pela Ficção-Científica, que “descobri” também quando ainda andava no Liceu (sem contar com algumas obras do Júlio Verne que havia lido, mas que não havia ainda associado a “Ficção-Científica”), e que foi espoletada pela obra de Keith Roberts “Vieram do Espaço” (título original “The Furies”) publicada em 1970 pela editora Livros do Brasil na Colecção Argonauta com o nº 154. A partir daí, fui coleccionando, e lendo, (quase) todos os volumes publicados mensalmente, assim como “recuperando” todos os números anteriormente publicados desde 1953, procurando em livrarias, em alfarrabistas, na Feira do Livro, etc. Orgulhosamente possuo todos os 565 volumes da Colecção Argonauta, entre os quais se inclui o raríssimo nº 130-A. Tenho ainda outras colecções de Ficção-Científica (Europa-América, Caminho…), muitas obras e colectâneas em inglês, para além daquilo que já não ocupa actualmente espaço “físico” tais como os ebooks e AudiBooks…que leio e/ou escuto na língua original (tipicamente o inglês).
A minha Biblioteca caseira já é enorme, com “milhares” de livros, de vários estilos literários, onde se incluem também imensos livros científicos e técnicos, e as BDs, claro!, para além da biblioteca/discoteca/cinemateca “digital” que tenho no meu “servidor” privativo (muitos Terabytes!)
Outra grande paixão é pela música, e também pelo cinema. A minha Biblioteca é também uma Discoteca, com imensos discos de Vinyl que adquiri nos anos 1970, 1980, e re-impressões actuais, alguns discos shellac a 78 rpm (que eram do meu avô) e muitos singles a 45 rpm (alguns dos anos 1950/1960 do Rock e do Swing que o meu avô trouxe quando regressou dos USA), e também cassettes e bobines de fita magnética (sendo uma que gravei junto com o meu irmão, nos dias 25 de abril de 1974 e subsequentes, comentando e o que se captava a partir da emissão do RÁDIO CLUBE PORTUGUÊS do "Aqui Posto de Comando do MFA” com os comunicados sobre o que se estava a passar), imensos CDs e SACDs, e uma Cinemateca (talvez já com uns milhares de volumes, desde Blu-Ray, DVD, cassetes VHS) e mais recentemente “streaming”. É ainda um Auditório com som circundante (surround), constituído na sua maioria por equipamentos Hi-Fi de topo de gama ditos “Vintage” de marcas QUAD, Thorens, Revox, JBL, Ortofon (alguns que adquiri na Valentim de Carvalho, ainda na Rua do Almada em Lisboa, por uma pequena fortuna, em 1973, pois já trabalhava enquanto estudava) complementados com outros equipamentos mais “modernos” para formar um ambiente multimédia de Cinema em casa, com projector 4K (com écran motorizado de 3 metros de largura).
Comecei a trabalhar muito cedo, tal como disse, quando ainda frequentava o Liceu, pois sempre quis ser “independente” (e responsável pelo meu destino) e os meus queridos pais sempre me apoiaram nesse sentido. Tanto assim que em 1976, quando re-ingressei na Universidade, já estava casado e tinha o meu primeiro filhote e trabalhava a tempo inteiro. Nessa altura o Instituto Superior Técnico tinha 3 períodos de aulas, o da manhã, o da tarde e o da noite. Claro que fui para o período da noite, que começava pelas 18:00h até às 24:00h, tendo que sair do trabalho (que era perto, na Rua de Arroios) e correr para as aulas (por vezes chegava com um pequeno atraso, esbaforido, pois o percurso era a subir) mas ficava a “absorver” tanto quanto podia até à meia noite, para depois correr novamente para apanhar o autocarro e o eléctrico da Carris para chegar a casa pela 01:00h da madrugada. Por vezes, ou perdia o autocarro (verde de dois pisos) ou o eléctrico, e a coisa complicava-se, pois teria que sair de casa para o trabalho por volta das 08:00h da manhã…Foi mais ou menos assim que passei 5 anos da minha vida (as licenciaturas em Engenharia eram de 5 anos), praticamente sem férias e sem fins-de-semana, e já com dois descendentes, para concluir a minha Licenciatura…que orgulhosamente consegui, e com boa classificação!
No ano seguinte (1983), surgiu-me a oportunidade de candidatar a uma posição na Electricidade de Portugal (EDP), e fui admitido, até porque a equipa que me entrevistou era formada na sua maioria por meus anteriores Professores do Técnico, que me conheciam muito bem, e assim a entrevista foi apenas uma agradável conversa.
Durante 10 anos, na EDP, passei por várias áreas, desde o comando e controlo do Despacho da Rede Eléctrica a nível regional, o Projecto de Infra-estruturas de Alta-tensão, e a gestão da implementação dos novos Sistemas de Informação (Informática), pois os existentes ainda eram essencialmente constituídos por alguns Mainframes (IBM e Unisys). Essa minha viragem para a Informática (na nova Direcção Central formada na altura) foi essencialmente devida ao reconhecimento do trabalho que eu desenvolvi nos sistemas de controle automático do Despacho da rede eléctrica que eram constituídos por sistemas de processamento em tempo-real, PDP-11, da Digital Equipment Corporation, onde adquiri o “bichinho” pelos computadores.
Foi assim que tive a responsabilidade pela “informatização” em grande escala da EDP, com a implementação de vários milhares de Computadores Pessoais (PC), que custavam pequenas fortunas, alguns ligados a Servidores em rede (Novell Netware) por todo o País, e isto em meados dos anos 1980!
Mais tarde, tendo saído do grupo EDP, abracei outros desafios, onde desenvolvi trabalho a nível internacional na áreas da Informáticas e das Redes de Comunicação e Telecomunicações. Foi assim que depois em Portugal (na sequência da liberalização do sector das Telecomunicações), participei como Director Técnico, na implementação de um novo Operador de Telecomunicações públicas em Portugal, a Maxitel, tendo também participado na implementação, em 1998, do Operador Móvel Optimus (actual NOS), em tecnologia GSM , e posteriormente a partir do ano 2000 num novo Operador de Terceira Geração Móvel, a OniWay, que por diversos motivos técnico/políticos não chegou a iniciar os serviços e teve que ser “desmantelado” após já ter investido umas centenas de milhões de Euro na infraestrutura, que estava pronta a operar (https://www.publico.pt/2002/07/04/jornal/edp-admite-congelamento-da-oniway-172365).
Desse desaire, passei depois para um outro Operador de Telecomunicações, a Radiomóvel, para implementação da infraestrutura de Operações do sistema 3G de tecnologia CDMA de banda larga móvel, onde estive até 2010.
Entretanto, na área científica, já tinha o Mestrado em Engenharia Electroténica e de Computadores, na vertente Redes de Comunicações, e o Doutoramento em Engenharia Informática e de Computadores, ambos do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa, e como investigador no INESC-ID Lisboa participei também em alguns projectos Europeus. Enquanto ainda estava na Radiomóvel, em 2006 fui convidado para ministrar uma “cadeira” nova no Mestrado em Engenharia Informática e de Computadores, que abordava a especificidade dos Serviços e Sistemas de Operação das Infraestruturas de Redes de Telecomunicações, áreas que havia desenvolvido nos operadores onde trabalhei. E foi assim que comecei a dedicar-me à investigação e à docência universitária, a tempo inteiro (assim que saí da Radiomóvel), e com responsabilidade por várias “cadeiras” do Mestrado, até ao momento da minha Aposentação (como docente universitário) em finais de 2021.
Foram mais de 47 anos de trabalho, cerca de 36 na Indústria e 15 na Universidade, e agora, já com 3 filhotes e 4 netos, embora continue ainda com alguma actividade científica, dedico-me essencialmente a fazer aquilo que mais gosto, e quando me apetece, e claro, a colaborar com o Gizmo neste fantástico projecto do Tralhas Várias!
Que belíssima narrativa. Adorei ler. Muito obrigado 😊👍
ResponderEliminarObrigado eu, caro amigo. 😊
EliminarMuito obrigado. Principalmente pelos "Argonauta". Fiquei "agarrado" à ficção científica, talvez em 1971/72 quando o meu pai me comprou o Vampiro 200 num alfarrabista do Porto (do saudoso Sr.Jose das Chaves de Bonjardim), pois eu deliciava-me com BD e livros policiais. Esse número da Vampiro era duplo e trazia um policial de Erle Stanley Gardner e uma ficção científica "Estação de Transito" de Clifford D. Simak. Não tenho infelizmente, nenhum exemplar do 130-A, mas tenho alguns do 200 da Vampiro. Mas depois devorei tudo o que me aparecia de FC
ResponderEliminarEu é que agradeço pela leitura, caro amigo. Também tenho esse 200 da Vampiro (e mais alguns volumes, mas não a colecção toda, pois quem mais aprecia os policiais é a minha esposa). Para além de BDs, tenho estado a disponibilizar aqui no Tralhas os Argonautas, quer os normais, quer os Gigantes, (a aparecer em breve), e se tudo correr bem, serão todos os volumes 😊. Em formato digital (que converto também para epub) até é melhor para mim, pois leio no meu Kindle Scribe em qualquer lado, e mesmo de noite no escurinho...pois para além de reler algumas obras várias vezes até chego a ler na língua original...e comparo, pois as traduções nem sempre conseguem "transpor" algumas das ideias do autor, nomeadamente quando usa expressões idiomáticas.
EliminarRuychi, sou a maior fã de seu trabalho... Gostaria de um dia conversar contigo sobre BD.
EliminarObrigado! Certamente que terei todo o gosto em conversar sobre BD. ruychi at gmail
Eliminarlinkedin.com/in/rui-santos-cruz
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